Anderson Paz, 44, sobe no palco, pega o microfone e diz para a plateia: “Boa noite, amigas e amigos, que tenhamos um ensaio abençoado por Deus”. O ensaio não é show gospel, mas de escola de samba, com tudo a que tem direito: bateria que, em sua origem, provavelmente era uma louvação a alguma entidade, cervejinha, pouca roupa.
No Rio, cidade do Carnaval administrada por Marcelo Crivella (PRB), bispo licenciado da Igreja Universal que se recusa a ir ao sambódromo, há pessoas que habitam os dois lados, o evangélico e o carnavalesco, tidos, aparentemente, como incompatíveis.
Nos barracões da Cidade do Samba, tem gente que não se sente em conflito por cair na folia e pertencer a uma igreja, tem aqueles que sentem desconforto e seguem adiante e tem os que dão um jeitinho para poder fazer as duas coisas.
O Carnaval chegou antes do evangelho na vida de Anderson. Começou cantando num bloco da favela da Maré, onde foi criado, e não parou mais. Com uma vida amorosa conturbada, teve 10 filhos. “Meu único problema espiritual era essa coisa do envolvimento entre homem e mulher, promiscuidade.”
Ir à Igreja Batista foi sugestão de um amigo. “Quando ouvi o louvor, senti que era aquilo que precisava. Tudo o que vinha do altar parecia falar comigo.” O pastor dizia que Carnaval era coisa do diabo. Anderson parou de cantar samba e abriu uma venda para se manter. Chegou a anunciar sua conversão na escola. Na igreja, era apresentado como ex-intérprete.
Passou um ano longe, mas depois sentiu que não precisava abandonar o que amava.
“Onde diz na Bíblia que eu não posso cantar samba? A palavra de Deus diz que o dízimo vem do salário. Meu dinheiro vem do meu trabalho, então é abençoado.” Já na nova igreja, a Cristo Vive, consultou o pastor, que o apoiou.
Diz que não teve problemas em ser aceito como crente no Carnaval. “Nos momentos oportunos, inclusive, levo a palavra aos amigos. Se me procuram, eu falo”, diz ele, que hoje é intérprete da Inocentes de Belford Roxo, escola do grupo de acesso.
“No meio evangélico é mais complicado, as pessoas não veem com bons olhos.”
MEIO-TERMO
Tatiane Oliveira, 34, conhecida como Feiticeira, construiu para si um meio-termo. Frequenta a igreja Assembleia de Deus Ministério Shalom Adonai, onde diz ser bem recebida, mas não se batiza. “Acho que seria um desrespeito participar do Carnaval. Igreja tem doutrina, regras”.
Ela, que foi musa e passista e hoje é secretária do presidente de honra da Grande Rio, diz que não voltaria a desfilar na avenida.
“Mas não vou deixar o Carnaval. Se estou aqui é porque tem um propósito para mim. Deus faz tudo certinho”, diz ela, que passou a frequentar igrejas desde que quase perdeu o filho após o parto.
Cahê Rodrigues, hoje carnavalesco da Imperatriz Leopoldinense, é batizado, mas não gosta de se dizer evangélico. “Não gosto de rótulos. Prefiro dizer que sou temente a Deus, alguém que tem uma fé inabalável.”
No seu barracão já houve orações em grupo. Sozinho, ele às vezes ajoelha e “conversa com Deus”. Costumava deixar a Bíblia em cima da mesa, mas parou. “Sentia que agredia as pessoas, elas entravam e olhavam”, diz ele.
Ele ficou intrigado pela igreja quando sua mãe, que tinha uma doença que não havia sido diagnosticada, se curou por meio da fé, segundo ele. Mas só se batizou mais tarde, quando encontrou uma igreja onde se via livre para agir de acordo com o que sentia, a Sara Nossa Terra.
TRADIÇÃO
Jacqueline Moraes Teixeira, antropóloga e pesquisadora da USP que estuda religião, diz que há uma tradição protestante no Brasil de distanciamento de festas populares que remetam a alguma divindade, com o Carnaval e a festa junina -a tradição protestante enxerga o culto a imagens e a santos como uma forma de idolatria, ou seja, de que se acaba cultuando as imagens e não a Deus.
“Tem igrejas que organizam retiros para os fiéis durante essa época porque há a ideia de que a cidade toda está contaminada. O fiel tem que se retirar para preservar seu corpo”, diz a professora.
No entanto, há muito diversidade entre as várias denominações protestantes e as várias igrejas. “Tem igrejas com forte presença urbana, como a Sara Nossa Terra e a Bola de Neve, que pensam os jovens e têm um discurso ideológico que dialoga mais com a cidade. Essas acabam tendo uma postura mais inclusiva.”
Nem todo mundo leva a vida dupla com tanta leveza.
Um membro de uma das mais tradicionais escolas de samba do Rio -que prefere não se identificar- conta que encara escola de samba como trabalho, algo separado de sua vida espiritual.
No caso dele, a igreja veio antes do Carnaval, e que esse só surgiu como uma oportunidade de trabalho temporária. “Aceitei, mas não foi uma opção fácil. Entrei em oração, conversei com Deus, levei ao pastor e tivemos o entendimento de que era trabalho, mas você não vai me ver sambando”, diz. Com informações gcn.net.
Gospel Geral
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